sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Ele e seu dia

Ele nunca havia pensado nisso. Para ele, esse seria um ato de puro egoísmo. De repente parecia fazer sentido. Ele seria egoísta. Pensara em sua família, em seus amigos. Quão clichê seria? Entrariam no aposento e o encontrariam com um buraco à bala na cabeça. Não, com uma corda em volta do pescoço. Talvez fosse melhor se ele resolvesse isso com o corte de veias... artéria femural? Pulsos? Garganta? Tantas formas, tantas dúvidas. Porém, a ideia da dor excruciante não o agradava muito. Dor... Ah! Overdose não doeria, ele simplesmente apagaria e pronto, trabalho resolvido. Sem mais angústia dia após dia, choros escondidos... Vida lenta, vida amarga. Ele deixaria muito para trás, mas não se importava. Era de fato um covarde. Poderia se jogar do prédio ou deixar que um carro o atingisse. Se ocorresse como planejado, pareceria um acidente. Não se envergonhariam daquele homem de 32 anos. Parecia tudo perfeito. Encarou o relógio. Os segundos se passavam rapidamente, ele estava perdendo tempo. Ela logo chegaria. Mas ele não poderia esperar para outra oportunidade, deveria ser aquele o dia. Voltou a pensar em overdose. Nunca gostou de drogas ilícitas, mas remédios resolveriam o problema. Remédios, remédios... quais? Foi até a cozinha procurá-los. Só havia lá remédio leve ou de efeito insuficiente. A farmácia mais próxima era a apenas quatro quadras de sua casa. Precisava de remédios fortes e bebida alcoólica, assim teria certeza de que não voltaria mais para aqueles dias de sofrimento constante. Olhou tentado para a garrafa de vodka no bar. Já havia álcool o bastante em sua corrente sanguínea, mas sua sede era insuportável. Coçou o queixo com barba de dias e atravessou a sala. Abriu a garrafa e nem se deu ao trabalho de pegar um copo. Bebeu dela rapidamente até seus olhos derramarem pesadas lágrimas. Sentou-se no chão e viu através da janela o sol se pôr enquanto se embebedava cada vez mais. Seus pensamentos estavam começando a se confundir, mas ele se concentrou ao máximo em manter o que planejava. Levantou-se cambaleante, pegou a carteira e a chave e saiu. Quando entrou no elevador, duas pessoas se afastaram. Ele estava com uma péssima aparência e exalava álcool. Não se importou, pois tudo isso acabaria logo. Enquanto andava apressadamente pela calçada, passava as mãos pelos cabelos de forma transtornada. Estava começando a chamar a atenção dos demais pedestres. Tentou manter a compostura quando entrou na farmácia. Encontrou uma atendente que conversava animadamente com outra e, portanto, não deu muita atenção para seu cliente. Entregou-lhe o remédio que lhe foi requisitado sem contestar. Ele ficou observando-a mesmo depois de ter sido atendido. Ela de alguma forma o fascinava. Seu sorriso, em especial. Ele gostaria de voltar a sorrir. Esboçou uma tentativa de sorriso frustrada. Foi pagar o remédio, mas não conseguia tirar a cena das atendentes conversando. Pareciam tão felizes. Será que um dia ele teria sido feliz? Ou ele já foi feliz? Após sair da farmácia, caminhou lentamente enquanto pensava em todas as suas memórias. Não estava mais apressado. Será que isso era o certo a se fazer, mesmo? Ele não via alternativa. Então pensou em tudo o que poderia viver, em todos os bons momentos que poderia passar. Ele era jovem, sua vida não deveria terminar assim, por mais maçante que fosse. Ele poderia tentar mudá-la. Com certeza encontraria uma segunda chance. Isso o deixou confiante. Ele não era mais egoísta. Enxugou as lágrimas que escorriam raivosas pelo seu rosto. Começou a planejar agora como viver. Acreditava plenamente que seria feliz a partir daquele momento. Teria uma vida nova. Nada o tirava dos seus pensamentos, até que ele foi abordado por um sujeito que segurava discretamente uma faca. Olhou à sua volta enquanto passava a carteira. Estava entorpecido com aquele dia. Não havia ninguém relativamente próximo na rua. Quando olhou o rosto do assaltante após entregar a carteira, o rapaz sorriu maliciosamente, o esfaqueou três vezes e correu. Ele caiu na calçada mal iluminada, sangrando intensamente e respirando com muita dificuldade. Roubaram sua chance. Ao fim, ele estava certo, naquela noite tudo acabou. Sua chance se esvaiu, mas o jovem homem percebeu definitivamente a felicidade escondida e presente em sua vida. Conseguiu alcançá-la, sem ter notado. Ela estava lá, nos seus momentos simples e eternos. Como pôde ter sido tão tolo? Almejava o que nunca conseguiria encontrar. Espontaneamente, sorriu como nunca sorrira antes, pensando na ironia do destino e naquele último dia. Descobriu toda a verdade que precisava e, quando encontraram seu corpo, ele encarava o céu escuro com o sorriso inédito ainda estampado no rosto.

2 comentários:

Carlos Augusto Costa disse...

Se matar com remédios dificilmente dá certo, pois quase sempre conseguem limpar o organismo depois.

Gostei do conto. Pensei que não postavas mais.

Rayra Brandão disse...

Egua do texto genial!
Foi incrivel como conseguiste transitar de uma crise fatal de existencialismo para um sentimento arrebatador de felicidade existencial.
Nao sabia q voce tinha tanto talendo.
É um texto que eu pensaria ter sido tirado de um famoso livro, ou um resumo de um grande romance.